O brasileiro gosta de acreditar que é um povo cordato, gentil, que não faz guerras, que não acalenta ódios racistas, que leva a vida numa boa e uma vez por ano espanta as tristezas numa festa popular inigualável.
Mesmo gente ilustrada e conhecedora da realidade, por distração, preguiça ou ignorância momentânea, também acaba achando isso vez por outra.
Mas, naqueles dias (e todos, homens e mulheres, temos aqueles dias) em que acordamos com a cabeça zuniando e sem achar a menor graça naquele desgraçado daquele passarinho que inventou de cantar justamente naquela árvore horrorosa diante dessa infeliz dessa janela, vemos este lindo país e a brava gente que o habita, como realmente são.
As anotações abaixo foram feitas num desses dias azíagos: ontem.
TORTURABrasileiro não precisa se dar ao luxo de morrer de pena das jovens mutiladas em países tribais da África. Nem fingir grande dor com os relatos das torturas em prisões políticas subterrâneas no oriente médio ou mesmo no Caribe.
Temos aqui mesmo, em território nacional, atrocidades de todo tipo, com e sem patrocínio oficial.
Não lhes parece sintomático que a maioria das fotos de prisioneiros recém-capturados mostrem algum tipo de ferimento ou hematoma? E se vocês já tiveram a alegria de presenciar a captura de algum suspeito, certamente viram senhoras, rapazes, homens, gente que teoricamente seria “de bem”, instigando os policiais a darem “uma coça nesse safado”. Isso quando não ensaiam algum linchamento.
Prender mulheres e homens na mesma cela lhes parece injusto? Que nada. É a forma como o Brasil funciona: o brasileiro faz absoluta questão de não saber o que é feito dos prisioneiros, nem para onde vai o lixo que produz e muito menos que fim levou toda a merda que depositamos em correntes de água, sempre que damos descarga.
O mundo se espanta com a barbárie de uma moça colocada à disposição de 20 homens, numa cela, por tantos dias, com o conhecimento de uma juíza, de uma governadora e de dezenas de outras autoridades masculinas. Homens e mulheres sobejamente titulados, mas, é claro, sem o essencial diploma de ser humano. Mas quem disse que desumanidade é defeito, no Brasil?
Cobra-se da ministra e do presidente atuais, atitudes claras e firmes contra a tortura e a barbárie. Fogo de palha. É só sair do noticiário que ninguém mais se incomoda. Como nunca se incomodaram nos séculos anteriores. Todo pobre, preto, malvestido, feio, com algum defeito, sabe bem como o brasileiro é cruel. Como odeia gratuitamente. Como ri com a desgraça alheia. Como é conivente com a tortura. Toda ela.
INTOLERÂNCIAAchar que torturar e matar bandido resolve algum problema é idéia que nasce da mesma cabeça de jerico que acha que só merece viver quem concorda com o que a gente pensa.
Vocês já devem ter presenciado alguma discussão sobre futebol onde os “torcedores” não querem nem saber sobre o jogo em si. Apenas enumeram os cortintianos que querem que morram. Ou os palmeirenses que, se entrarem por aquela porta, serão escorraçados a pau. Ou os flamenguistas que estão marcados para encontrar uma bala perdida.
Coisa de bandidos, de alguma torcida organizada fanática? Sim, é confortável pensar assim. Mas se prestarem atenção verão que cresce o número de gente que “debate” vários temas, além do futebol, nesses termos.
Na internet, as discussões “políticas” entre comentaristas de blogs jornalísticos, polarizam-se da mesma maneira. Os petistas agridem os tucanos, os dem’os descem o cacete na petralhada e a única coisa que resta, do monturo que produzem, é o ódio irrestrito.
Na época da ditadura a gente achava que aquela história de “ame-o ou deixe-o” era uma coisa patética de algum milico raivoso. Vemos agora que é uma coisa bem brasileira. Melhor: bem contemporânea, típica do estágio de regressão da humanidade, que caminha celeremente para desvestir-se de todo verniz de civilização que começava a cobrir-lhe algumas partes do corpo.
Foi abolido o debate, o diálogo, a discussão: assim que surge um contra-argumento verbal, o contendor saca um argumento físico. Um porrete. Ou uma arma. E, se não estás comigo, estás morto.
INDIVIDUALISMOAinda que sejamos alguns milhões, que nos amontoemos cada vez mais em zonas urbanas apinhadas, fazemos questão absoluta de não viver em sociedade. Não sabemos nem queremos saber conviver em espaços urbanos.
Centenas de watts de potência no “som” do carro servem para circular, nas madrugadas, pelas cidades, acordando os idiotas que insistem em viver nas cidades brasileiras.
No verão, nos balneários, a coisa é ainda pior. Mata-se e morre-se por causa do barulho. Meia dúzia de imbecis acham-se no direito de perturbar milhares. E dependendo de filhos de quem os imbecis sejam, não há quem os faça parar.
Dependendo, porém, de quem se trate, tropas especiais da polícia invadirão a casa e produzirão barbaridades que se igualam, em atraso de vida, ao mal que vinha sendo cometido antes.
A lei, que em alguns países serve justamente para dar um pouco mais de chance ao que foi menos dotado pela fortuna e colocar alguns limites naqueles que nasceram com o rabo cheio de dinheiro, aqui não vale nada.
Otários respeitam a lei, gente “de bem” faz o que bem entende. Qualquer coisa, depois a gente conversa com o juiz e explica direitinho. E ganha uma nova chance de afrontar a lei. Até que se mude a lei.
Como se vai fazer agora com o tal “estatuto do desarmamento”, que será alterado porque muito bacana não podia mais levar suas armas livremente à discussão no bar ou no trânsito. Morreu menos gente durante a vigência do tal “estatuto”, mas isto não importa.
Um povo bom como o brasileiro precisa de armas. Muitas armas. Para que as discussões, aquelas, marcadas pela intolerância, se resolvam definitivamente. E para que riquinhos, que se acham branquinhos (mas que geralmente têm vovós com pezinhos na África), possam não só bater e tocar fogo em índios e mendigos, mas também metralhar, de dentro de seus carrões lustrosos e motocas barulhentas, os morenos, pretinhos e todo tipo de brasileirinhos que estiverem a pé.